É uma das apostas para tentar atrasar ou impedir que o Alzheimer se desenvolva. Acredita-se que os remédios hoje disponíveis têm sido pouco eficazes porque chegam ao paciente tarde demais. O cérebro já estaria muito debilitado para reagir. “Outros testes precisam ser feitos, sobretudo em relação ao Alzheimer tardio, mas acreditamos que iniciar o tratamento antes que a perda de memória ocorra é um passo importante para dar um fim ao Alzheimer”, afirma Pierre Tariot, um dos diretores da pesquisa no Instituto Banner do Arizona.
La bobera
Na sexta-feira, 25 de novembro passado, o conselho municipal de Angostura ouviu chocado as explicações do doutor Lopera sobre como la bobera – o nome popular da doença – se espalhou na região. “Perdi a minha mãe há dez anos. E tenho 3 irmãs prostradas, duas em fase terminal”, contou o conselheiro Carlos Baltazar. “As pessoas diziam que elas tinham puxado a mamãe e ficaram bobas também. É a herança. Mas tive sorte. Acho que escapei porque já cheguei aos 60 anos.” Como ele, quase todos os 11 representantes (no Brasil, seriam vereadores) têm um parente ou conhecem alguém que esqueceu a própria história e, nos estágios mais avançados da doença, não consegue nem se alimentar sozinho.
Por muito tempo acreditou-se que la bobera era contagiosa. Diz a lenda que um padre proibiu a população de encostar em uma árvore maldita (não se sabe exatamente por quê). Os primeiros doentes teriam sido aqueles que ousaram desobedecer à ordem. Quem tocasse nas feridas ou fizesse sexo com um enfermo também ficaria bobo. Até 3 décadas atrás, era assim que, de agricultores a vereadores, todos entendiam a epidemia. Isso começou a mudar quando Lopera e sua equipe identificaram a mutação paisa (“camponês”) nos genes dos pacientes da região. Ao notarem a grande ocorrência de pessoas doentes em Angostura e nas cidades vizinhas, cruzaram certidões de nascimento e óbito e reconstruíram os galhos da suposta maldição.
Naquele 1o encontro com uma autoridade municipal desde o início das pesquisas, os médicos da Universidade de Antióquia ouviram apelos para que revelassem os sobrenomes dos afetados. Responderam com uma negativa e a explicação de que esse tipo de dado não poderia ser revelado em público, para preservar os interessados. Muitos dos pacientes são conhecidos somente por um código, de forma a proteger a informação. É de se imaginar o impacto que a notícia pode ter a quem carrega a mutação. Na prática, vale como uma sentença de morte – ser portador da paisa é garantia de desenvolver a doença.
Oferecer seus cidadãos como cobaias do programa (não se sabe com certeza dos eventuais danos que o tratamento antecipado pode trazer ao organismo) não é tarefa fácil, mas é certo que Angostura não tem nada a perder. Ter a mutação leva a pessoa a apresentar a doença provavelmente entre 30 e 40 anos. Idosos com uma espécie de predisposição genética (entre algumas já identificadas, que favorecem o aparecimento do mal mas não garantem que ele ocorra) nos EUA também participarão da experiência. Antioquienses e americanos receberão drogas para tentar impedir a formação de placas beta-amiloides no cérebro, uma das principais características do Alzheimer. Há 389 grupos genéticos no mundo que apresentam a mesma forma da doença do clã colombiano – quem tem esse tipo precoce e hereditário representa 1% do total de vítimas da doença.
À meia luz, mirando seu PowerPoint na única parede que não estava tomada por imagens do padre Marianito e estantes velhas no pequeno salão, Lopera explicou aos conselheiros que o difícil acesso à região, os hábitos rurais herdados da ascendência basca e uma sucessão de casamentos consanguíneos levaram à imagem projetada: uma árvore genealógica de 3 séculos e sucessivas gerações cada vez mais atingidas pela mesma alteração no cromossomo 14.
Outro médico da equipe, Andrés Villegas, destacou na reunião o alto custo do tratamento dos doentes e sugeriu opções para que o município os atenda. “Uma caixa de medicamento custa 300 mil pesos por mês (cerca de 150 dólares), dali a pouco são duas caixas. É mais econômico investir em prevenção.” O impacto sobre as famílias, em geral de baixa renda, é brutal. Não há rede hospitalar adequada e muitas recorrem à solidariedade para dar conta de seus parentes. Com alguma frequência, o sistema de saúde nacional obriga os colombianos a ir à Justiça para pagar itens como fraldas geriátricas.
Vítimas também da guerrilha
Angostura e todas as cidades da região ainda têm outro problema que encarece e dificulta muito o atendimento dos atuais e futuros doentes. É intensa a movimentação de guerrilheiros das Farc e paramilitares naquele pedaço estratégico dos Andes, que dá acesso ao mar e é rota do narcotráfico. Até recentemente, assassinatos e massacres ali eram comuns. A viagem da SUPER a Angostura e Yarumal foi atrasada em vários dias porque as estradas ficaram interrompidas após outro dos recorrentes ataques em que veículos são incendiados e suas carcaças transformadas numa espécie de campo minado para dificultar a ação da polícia. Uma enfermeira da universidade já foi sequestrada e os achaques a integrantes do grupo de pesquisa fazem parte da rotina em todas as cidades vizinhas. Certa vez, os médicos foram autorizados a passar desde que vissem a mãe de um guerrilheiro com sintomas da doença.
Numa das últimas casas da ladeira que dá na praça principal de Angostura mora Alba. Ela cuidou de sua mãe até o dia em que Líbia morreu de Alzheimer – seu cérebro foi um dos examinados na última década. Agora, aos 57 anos, é Alba quem depende inteiramente de cuidados. A psicóloga Lucía Madrigal faz visitas periódicas a ela e a outras famílias. Nascida na cidade, cresceu entre seus futuros pacientes. Escapou da mutação, mas sabe muito bem o que significa conviver com ela: “Para quem cuida dos enfermos não existe um projeto de vida. Uma pessoa que tomou conta de sua mãe tanto tempo chega aos 50 anos de mãos vazias”. A Universidade de Antióquia tenta convencer a prefeitura a adequar uma casa para atender os doentes quando não há quem faça isso e mantém uma fundação para socorrer os doentes de Alzheimer e outras demências. Em Yarumal, a 40 minutos dali, Maria Elsy, de 61 anos, apresentou os primeiros sintomas aos 48. Não sai da cama e só se alimenta usando uma sonda nasogástrica. “Agora ela está muito bem. Acontece que é muito mimada. `Não é verdade que você é uma bebê mimada?¿”, diz Vitória para a irmã de olhar perdido. Vitória e sua mãe, Laura, de 82 anos, cuidam de mais 2 irmãos com la bobera. Um 4o vive em Medellín. “Maria Elsy andou desanimada, mas agora está melhor.” Entre as novas gerações de sua família, todos temem o futuro e já há quem se recuse a ter filhos.
Tratar o doente exige dedicação e recursos, e não só na Colômbia. Nos EUA, calcula-se em mais de 17 bilhões as horas não pagas de quem cuida de um familiar, equivalentes a 219 bilhões de dólares. Há cerca de 35 milhões de pessoas com o mal no planeta ( a grande maioria tem mais de 65 anos). No Brasil, são aproximadamente 1 milhão. Somados os gastos dos sistemas de saúde, a conta do Alzheimer bate 1% do PIB mundial (mais de 600 bilhões de dólares em 2010). Não surpreende que a indústria farmacêutica invista na área. Uma droga eficaz soa como uma mina de ouro. A experiência em Antióquia, que ainda está definindo seus patrocinadores (mas já testou 2,4 mil cidadãos para a mutação paisa, e fez outros exames) vai custar pelo menos 50 milhões de dólares e durar 5 anos.
O Alzheimer vai consumir cada vez mais esforços e vidas. A perspectiva de envelhecimento da população pode levar o total de vítimas a quase quadruplicar até 2050. É difícil distinguir seus sintomas do processo natural de envelhecimento do cérebro. E pior: ainda não se sabe exatamente o que causa a doença. As pesquisas atuais também investem em técnicas de imagem e na identificação de marcadores, determinados danos ao cérebro que possam servir de alerta antecipado tanto quanto possível para o início do mal (e de como ele evolui). Os antioquienses são preciosos para a compreensão desses mecanismos porque já se sabe que cairão doentes. Serão medicados 15 anos antes do surgimento esperado dos sintomas. “É um estudo de grande importância”, afirma Sonia Brucki, da Academia Brasileira de Neurologia. Peter J. Whitehouse, neurologista da Universidade Case Western Reserve, porém, é mais cético. “Não está claro se os remédios que funcionarem para os voluntários vão servir para o Alzheimer tardio ou se as drogas serão eficientes se ministradas mais cedo.”
Ainda que os resultados da pesquisa demorem muito a aparecer, ela já tem consequências. “Aqui em Angostura há quem tenha vergonha de ter um parente com Alzheimer. Isso é a primeira coisa que temos de mudar. Não sabemos quando poderá ser alguém da nossa família”, disse o conselheiro Albeiro Agudelo naquela sexta-feira de novembro. A cidade tem muito o que lembrar. Para o próprio bem.
Inimigo desconhecido
Um contingente assustador de pessoas no mundo tem demência e nunca recebeu diagnóstico ou tratamento. Isso pode significar até 90% dos doentes em países menos desenvolvidos e 36 milhões de pessoas no total. Para a Associação Mundial de Alzheimer, este é hoje o maior desafio a ser enfrentado. Para quem tem Alzheimer, a demência mais comum, faz toda a diferença. Após os primeiros sintomas, a sobrevida média é de 8 a 14 anos. A degeneração do cérebro é progressiva e irreverssível. E ninguém até hoje foi capaz de explicá-la. Apesar de tanta ignorância, o que se sabe é mal aproveitado na prática clínica, sustenta o neurologista Cicero Galli Coimbra, professor da Unifesp. “Numa das pesquisas mais longas da história da medicina, George Vaillant, na Universidade de Harvard, demonstrou que o estilo de vida, o estresse e a depressão aumentam muito a chance de a pessoa desenvolver Alzheimer”, afirma Coimbra. Tudo isso interfere na formação de novos neurônios, diz, antes de defender o foco na prevenção. “A abordagem generalizada é na busca de uma droga salvadora. Já sabemos que a vitamina D controla 229 funções das células cerebrais, mas poucos médicos dão atenção a isso: na cidade de São Paulo, no inverno, 77% da população apresenta déficit de vitamina D.”
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